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Ser Escritor


Ph: Matheus Soriedem

Ontem foi o Dia Nacional do Escritor, celebração que me impeliu a escrever e a assumir o compromisso de retomar este blog e voltar a publicar semanalmente, como fazia na Revista Literar durante as residências de criação de “A Casa da Senhora H”, romance ainda inacabado e inédito e que será objeto de outro texto em breve. Por ora, quero começar com uma máxima que costumo repetir em minhas aulas, seja de Criação ou Redação Publicitária, ou mesmo em processos de criação dramatúrgica e cênica: escrever “bem” e “bonito” não basta para ser um escritor. Tais advérbios relativizam qualquer escrita ao gosto do freguês, pessoalizam demasiado as escolhas e classificações, dá margem para reunir muitos gatos no mesmo balaio. E outra: não se ensina a ser escritor, a não ser regras e procedimentos da língua, formatos e linguagens, mas o texto se aprende textualizando.

Escreve-se escrevendo, mas nem todos que escrevem são escritores. A escrita é uma invenção e uma forma de interação humanas. Entretanto, escrever como ofício é mais do que lançar palavras e expressões por aí. Leio e ouço muitos textos, hoje em dia intensamente proliferados pelos teledispositivos móveis e redes sociais; vejo muitos espetáculos contemporâneos e de jovens dramaturgos, e cada vez mais me convenço disso. Há muitos textos mal sucedidos e também há felizes exceções. É preciso que as letras atravessem o papel, a tela, a cena ou a voz para atingir o outro, entrar dentro dele, provocar, traduzir, emocionar, sobretudo, comunicar. E comunicar não exatamente quer dizer concordar, mas estabelecer uma relação. É preciso exercício e prática constantes, de muita leitura e escrita (binômio indissociável), tenacidade e persistência.

Este texto não tem o propósito de julgar textos alheios (deixo para os críticos ou quando estiver em exercício intelectual e acadêmico). Desejo apenas compartilhar um pouco da minha história-trajetória como escritor que um dia quis ser, ainda quero e persigo diariamente na lida deste ofício que me fascina e me dá imenso prazer. Lembro-me da escritora Hilda Hilst, para quem escrever era uma tarefa árdua, que lhe causava mal-estar, febre e náuseas, uma lida pesada como quem “pega numa enxada”. Para mim, ao contrário, apesar de entraves e dificuldades, pois muitas vezes faltam palavras para o que se quer dizer ou exprimir, escrever sempre foi um gozo, uma intensa excitação.

Escrevo ficção desde que aprendi a ler a e escrever, na pequenez dos meus seis anos de idade, aprendizado que me proporcionou emancipar sonhos, desejos e imaginários convertidos em palavras, escritas a lápis em cadernos e folhas. Depois aos onze anos com as aulas de datilografia conquistei a técnica das teclas da máquina que exigiam das minhas mãos pequenas grande esforço. Finalmente aos dezessete o computador pedia menos força, mas permitia a mesma destreza. É como ser um pianista de letras, dedos que percorrem teclas, produzem sons e ritmos e dão voz a palavras, orações e muitas narrativas. Escrever é manifestar-se: de voz silenciosa para ouvidos, audível para olhos.

Aos treze anos escrevi meu primeiro romance “O caso do Teatro Municipal”, uma história juvenil de suspense, ainda a mão e a lápis nas páginas de um caderno escolar. Aos quatorze, a primeira investida na máquina de escrever, emprestada pela Tia Cláudia, de onde nasceu “Cinco crimes”, uma iniciação ao romance policial adulto, gênero que marcou minhas leituras de adolescência e me fez colecionar vorazmente muitos títulos de Agatha Christie. “Almas vendidas” versava sobre um médico que comandava uma quadrilha de tráfico de crianças e bebês, escrito no “début” dos 15 anos. Em seguida, aos dezesseis, “O Sentido das Águas” foi a escrita mais robusta do período, um romance de mais de duzentas páginas (com entrelinhas simples) que girava em torno de uma protagonista muito sedutora que convidava todos seus desafetos para uma festa de aniversário. No último ano do Ensino Médio, em 1995, “O Cavalo Amarelo”, inspirado pelas superstições em torno do Apocalipse, que muitos acreditavam estar próximo com o fim do milênio. Esse me proporcionou um prêmio literário promovido pela Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafayette, em que conquistei o terceiro lugar na categoria Romance.

Essas experiências foram marcantes para o início desta trajetória: produzia os volumes datilografados em brochuras e com capas desenhadas e criadas também por mim, na tentativa de aproximar ao máximo de um livro de verdade. Cada romance tinha um único exemplar que circulava primeiramente junto a meus colegas de turma e depois alcançaram alunos de outras séries do colégio, até que uma das minhas brilhantes professoras de Português convidou-me a “palestrar” sobre eles em algumas salas. Se de um lado este incentivo era motivo de orgulho e estímulo para novas produções, em casa a intensa dedicação de tempo à máquina de escrever era motivo de preocupação, por talvez comprometer meu rendimento nas disciplinas, o que me trouxe muitos dissabores e conflitos. Qualquer negativa ou proibição doméstica potencializava o desejo de continuar. Entretanto, no fundo, desacreditava da possibilidade de um dia tornar-me um escritor profissional: as dificuldades de publicação e circulação, de venda e direitos autorais, de sobreviver das letras. Decidi, ao fim do Ensino Médio, estudar Comunicação, onde poderia reunir minhas principais habilidades, a escrita e o desenho, e assim conseguir chegar ao mercado de trabalho com melhores perspectivas.

Naquela altura, o Teatro já se somava às minhas experiências artísticas, iniciadas como ator e rapidamente direcionadas para a dramaturgia e a direção, para onde acabei concentrando minha atividade de escrita até os dias de hoje, ampliada para a encenação. De 1996 até agora foram inúmeras peças, adaptações literárias e dramaturgias inéditas que circularam por inúmeros palcos e me proporcionaram encontros e aprendizados com muitos artistas incríveis. Mesmo sem publicar meus textos, segui paralelamente escrevendo literatura, muitos contos, poemas, letras de música, e mais dois romances, entre outros iniciados e não finalizados, “Refúgio, Remorso e Reveillon” sobre as dificuldades de relacionamentos afetivos e em família, e depois “Eu e Iná” sobre o abandono e o isolamento de si. Nenhum destes textos chegou a público nem à editora ainda, ora por vergonha, ora por medo, desconfiança de não serem bons para tal. Ficaram guardados nas gavetas e armários, mas tenho pensado em revisitar e publicar eventualmente aqui, pescados de um baú empoeirado que guarda algumas perólas.

Outras experiências de escrita se ampliaram por meio da pesquisa acadêmica, tanto no Mestrado quanto no Doutorado, e surpreenderam-me pelo interesse que os estudos provocaram e me levaram profissionalmente ao mercado editorial: “O fluxo metanarrativo de Hilda Hilst em ‘Fluxo-floema’” (2010, Editora Annablume) e “Narrativas em cena: Aderbal Freire-Filho (Brasil) e João Brites (Portugal)” (2015, Móbile Editorial/ Faperj) tiveram lançamentos oficiais, sessões de autógrafo e a felicidade da circulação destes textos, que já encontraram leitores de lugares diversos, dos quais eventualmente recebo contato, mensagens, ou mesmo encontro citações e referências em pesquisas no Google. Além destes, alguns artigos encontram-se publicados em revistas especializadas, artigos em jornais e alguns contos em coletâneas e antologias aqui e ali. O leitor pode encontrar alguns deles na web, os links estão na página “Publicações” aqui mesmo no site.

Agora venho retomando o hábito de escrever ficção literária, estimulada por pesquisas na UFMG sobre performance narrativa e autoficção, principalmente pela empreitada do romance “A Casa da Senhora H” que, depois de cinco anos de pesquisas e experimentações, chegará à sua versão final neste ano e estará à disposição de editoras interessadas. E sobre o ofício do escritor, despeço-me evocando a escritora Lygia Fagundes Telles, cuja declaração me marcou profundamente quando li: “A função do escritor? Escrever para aqueles que não podem escrever. Falar por aqueles que muitas vezes esperam ouvir da nossa boca a palavra que gostariam de dizer. Comunicar-se com o próximo e se possível, mesmo através de soluções ambíguas, ajudá-los no seu sofrimento e na sua esperança. Isso requer amor – o amor e a piedade que o escritor deve ter no seu coração”.

Boa semana e parabéns aos colegas de escrita e sonho!

Próximo texto (02/07): Ser Escritor (no Brasil)

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