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Sentinela


Para alguém que vai chegar.

Eu, sentado à espera de alguma coisa que não sei, um movimento qualquer de dentro pra fora, um olhar do outro lado daquela janela, um música no rádio estragado, uma voz vinda não sei de onde que apenas me diga: te amo. Um impasse inerte e desconfortável. Esconjuro pai e mãe nesses momentos em que bebo, não só eles, irmãos e tios e amigos, também o Governo, povinho safado, e também esses ladrões que andam à solta por aí, bandidos cruzando o centro da cidade. Só faltam dizer: ninguém entra, ninguém sai. O inferno do caos somado à barulheira de carros e buzinas, gente andando por todos os lados, distraídos com o próprio medo, com o pão na mesa e o leite das crianças, ou com alguém que partiu. Salvem os bêbados, os loucos, as prostitutas e os prostitutos. Olho este lugar onde me encontro, no relógio são onze ainda, um lugar social, de gente comportada sentada rindo discretamente, bebendo discretamente, beijando na boca discretamente, e eu desconfio que essa discrição seja uma explícita hipocrisia.

O meu copo oscila entre o cheio e o vazio, um movimento de fora pra dentro, o líquido sai do vidro e toma a garganta, desce dançando até o estômago e sobe delinqüente para o cérebro. Ninguém perto de mim. Todos os discreto-hipócritas vão vivendo bem longe, nas mesas mais adiante da que eu me encontro, respiram-se seus próprios perfumes, certificam-se de que o mundo é o mundinho deles e são felizes e que se fodam os outros. Ainda bem. Que fiquem sorridentes onde estão, adiante. E agora que não sobrou nada, posso deixar de macular o que o ofício me obriga. Dentro da bolsa estão as roupas que uso de quinta a domingo, regularmente, das nove às dez e meia, é um conjunto de roupa só, o tempo da história na peça não permite outra.

Sei pouco a seu respeito, a gente sempre tem que inventar o restante para não ficar muito vazio. O que sei: seu nome é Carlos, tem aproximadamente trinta e cinco anos. Ex-seminarista. Casou-se com Dora. Tem uma filha de nome estranho (esses autores!), Antentra. Carlos um dia pensou o quanto sua vida era inútil e deu cabo na mulher e na filha, e depois em si mesmo. O público fica estatelado na última cena, o que eu posso fazer? Quando aponto a arma para Carlos, meu personagem, e a sonoplastia dá o som do tiro, meu corpo cai em cena e as cortinas se fecham. Mas não sem antes fazê-lo balbuciar nobilíssimas palavras: É preciso morrer para que se viva com dignidade. Neste país sobrevivência virou piada. Detrás do pano eu ouço os murmúrios de indignação e revolta, senhoras lamentam a morte dos personagens, homens esbravejam ensandecidos com a drasticidade do texto.

É isso aí, meu chapa, tem que ser drástico mesmo. Tá achando que televisão vai te contar que tá difícil? Não vai não... É por isso mesmo você vem ao teatro, porque aqui a gente pode dizer tudo e a impressão é até mais impressionante, porque o personagem está vivo diante dos olhos da plateia. Eu, do meu lado, maculo a existência de outro. Maculo a existência de Carlos, seja lá quem for este sujeito que um dia alguém inventou. Maculo a minha própria existência. O copo cheio não me diz quem sou. Quando vazio, talvez. Não importa. Agora o bando discreto está cada vez mais discreto, riem cada vez mais baixo, beijam cada vez menos as bocas, as calças debaixo da mesa, ao contrário, vibram incessantes para a consumação do fato, mas logo acima da mesa os sorrisos são doces. Céu e inferno separados por uma mesa de bar. Em mim tudo se faz inferno, qualquer dos dois lados está furiosamente aparvalhado e triste.

Há meia hora eu estava chorando por Carlos, emprestando todo o meu corpo e lágrimas para que ele sustentasse sua vida inútil. Emprestei os pés para os sapatos dele, cabelos e cílios, peito garganta e olhos. Emprestei umas qualidades e defeitos também para que a carcaça não ficasse muito oca. O diretor pediu-me isso, num momento de alucinada inspiração: Misture-se a ele, vamos, me proponha o mistério. Quero o inferno de não saber onde começa um e termina o outro, e vice-versa. Tolices. Sandices. Eu ator do mundo me proclamo nesta mesa de bar para que todos os personagens se explodam de uma só vez. Preciso, de fato, saber de onde vim, quem me escreveu, que destino reservou pra mim. Quando as cortinas se fecharem.

E todos vão rir bestas diante do desfecho desta minha existência calcada na existência de outros que não existem. Ficamos assim, os dois, eu e Carlos olhando um para o outro, misturados por um elo estranho e enigmático. “O temor da morte é a sentinela da vida”, disse um tal Marquês de Maricá. Marquês de Mariquinha. Marquês de Maricota. Marquês de Maricona. Enfim. Do lado de fora só vejo pulhas e biltres amontoados em gravatas, decidindo o destino das gentes. Eles não entendem nada de nada, ganham muito dinheiro, é verdade, sobem em palanques, dirigem grandiosíssimas empresas, fazem comerciais criativíssimos, teclam teclas de computador o dia todo. E no fim, esse fim que não que chega nunca, passam em brancas nuvens.

O país coleciona biltres e pulhas, e a cada canto que vou encontro uma supremacia deles disfarçados de várias coisas. Aquela grande escritora, talvez só eu e uns poucos saibamos o quanto ela é grandiosa, e ficou até minha amiga, Hilda, lá na chácara ensolarada com os cães os amigos e as palavras. Ela viu muito e ninguém quis saber. Fazem isso com todos aqueles que vislumbram o que está além da cortina. Ou por atrás da cortina, como é o meu caso. A humanidade decidiu não evoluir nunca, muito ao contrário, vive em espirais, sangue-morte-destruição, e assim é que vejo do lado de fora de todas as janelas. Um movimento avesso à natureza da existência, o fluxo jorra de frente para trás. É impossível entender esses arroubos humanos, eu também sou humano, mas ainda resisto. Penso em Carlos como parte de mim mesmo, a voz dele soando dentro de mim, passando pelo coração, socando o estômago, engolindo os testículos: É inútil, viver é inútil, Dora. Inúuuuuuuutil. I-nú-til i-nú-til i-nú-til e assim vai badalando o meu coração inquieto e triste. Porque não há amor. E que sei eu de tudo isso? Enquanto espero, esboço versos no guardanapo, pensando num amor, quem sabe, a salvação:

Diz-me quando vens

A porta vai estar aberta

O tempo disponível

Limpo como orações

Meu ser entregue a ti.

As manhãs serão eternas

As tardes confortáveis

As noites esplendorosas

O dia líquido de amor.

Diz-me quando vens

Eu descompromissado

À espera eterna de ti

Eu inteiro

À guarda do teu amor.

Não escreva

Não responda

Apenas, amor,

Diz-me quando vens.

Agora um dos rapazes da mesa da frente beijou a orelha da donzela, ela arrepiou fininho, sorriu, e depois sentiu a mão dele pousando no meio das coxas, arrepiou mais grosso agora, está molhada dos pés à cabeça. Está esperando uma foda melhor à que terá, as mulheres esperam mais. Eu, ator do mundo, de nadas, do meu lado penso na medida exata das coisas, sem pormaiores nem pormenores.

Olho para alguém que se aproxima, abre um sorriso, o olhar é lânguido e não acompanha o movimento dos lábios. Tem os cabelos curtos e negros, lisos e acetinados, as sobrancelhas de ângulo agudo. Senta-se. Suas mãos estão frias, mas não há inverno do lado de fora, aqui sempre faz muito calor, cidade abafada, isolada num buraco grotesco e envolta por muralhas de montanhas. Ela discretamente despeja o pó sobre a tábua da mesa e desajeitadamente tenta construir a carreira. Ela faz Dora. Sempre sai do teatro mais tarde porque a personagem fica grudada nela um tempão. Coisa esquisita. Então ela se isola no camarim até que Dora a deixe.

É inútil, eu repito o texto, e ela não me olha. Carlos e Dora sentados frente a frente na mesa do bar como se ressuscitados depois da morte cênica. Ela cheira com furor, parece destruir as camadas do mundo dentro de si mesma. Olha para o alto. Depois pra mim. E diz a frase célebre da personagem: Eu sei que é inútil, meu amor, mas é preciso tentar, não é? Quem sabe lá no fundo das coisas existe uma caixa de surpresas? Olho para Dora escondida atrás dela diante de mim e penso: No fundo das coisas estamos nós. Vamos dormir.

Belo Horizonte, 1º de agosto de 2002.

Dia impaciente. Lua minguante.

O conto "Sentinela" compõe a coletânea inédita "À espera de nada"

Boa semana e boas leituras!

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