O INÍCIO DO FIM
#DiárioDoRomance 26 de fevereiro de 2018:
Toda história tem seu fim. Quando fui pela primeira vez à Casa do Sol, em 29 de março de 2002, para conhecer a escritora Hilda Hilst, fascinado por seu trabalho e sua história, jamais imaginaria que hoje, quase dezesseis anos depois, estaria finalizando um romance sobre tudo isso. A visita, nas companhias das amigas Cris Gil e Janine Avelar, foi um marco em nossas vidas e, particularmente, uma mudança de perspectiva sobre o que até então era apenas um sonho de ser escritor. Por sua vez, o projeto de “A Casa da Senhora H”, que considero meu primeiro romance (profissional), completa cinco anos, iniciados com a conquista da bolsa Funarte/ Biblioteca Nacional de Criação Literária que me possibilitou participar do Programa de Residências Criativas do Instituto Hilda Hilst e mergulhar fundo nessa história.
De janeiro de 2013 até o momento, foram três longos períodos na Casa do Sol com essa destinação, em que pude integrar seu cotidiano (mais do que de outras e várias vezes em que lá estive como amigo e visitante), colaborar na organização primária do acervo de Hilda Hilst que se encontra na casa, separando documentos pessoais, cartas, bilhetes, diários, fotografias, recortes de imprensa, encontrando raridades e textos inéditos. Também tive o privilégio de ouvir tantas e maravilhosas histórias de alguns residentes, guardiães da memória, além de mapear a Casa do Sol, investigar suas dobras, suas funduras, investir o olhar a cada simples objeto que carregava uma incrível narrativa.
Na companhia preciosa de Daniel Fuentes, presidente do Instituto Hilda Hilst e personagem do romance
Em 2014, como conclusão da Bolsa de Criação Literária, entreguei à Funarte/ Biblioteca Nacional uma versão do romance, nomeada propositalmente de “Primeira Versão”, cujo mérito se revelava numa tentativa de organizar tudo o que havia pesquisado, lido, visto, anotado e ouvido. A história da Casa do Sol é a história do projeto de literatura de Hilda Hilst, mas também da vida de muitas outras pessoas e artistas que ali viveram com ela. Cumprido o protocolo com as instituições, deixei o romance de molho, voltando raras vezes a ele. Ainda que gostasse de muitos achados na escrita, sentia que faltava algo e esse algo levou um tempo para emergir e se tornar claro para mim.
Durante todo o trabalho de escrita, pesquisador obsessivo que sou, tentava desfazer cada ambiguidade ou contradição da história, buscar a parte que faltava a uma lacuna, cercar cada detalhe escapado, tampar os buracos que surgiam no percurso. Entretanto, a angústia crescia, sentia-me pisando numa areia movediça: os passos afundavam e não conseguia mais me deslocar. O romance ficou paralisado na primeira versão. Nesse ínterim, o livro, mesmo inacabado, deu origem a dois espetáculos de teatro, dos quais assinei a dramaturgia e a direção: “EuCaio” traz episódios do tempo em que o jovem escritor Caio Fernando Abreu viveu na Casa do Sol, durante a Ditadura Militar, e construiu sólida amizade com Hilda Hilst; “A Obscena Senhora H”, mais recente, revela bastidores do processo de escrita de um dos livros mais importantes da escritora, “A Obscena Senhora D”. Além desses frutos, também estive envolvido com outras montagens teatrais, além do cotidiano assoberbado de pesquisa e ensino na Universidade.
O tempo foi passando e não conseguia voltar ao romance propriamente dito, distanciando-me dele, mas sem abandoná-lo. Seguia paralisado nas minhas obsessões, mas só depois fui perceber que jamais, em tempo algum, daria conta de escrever a história integral da Casa do Sol, pois ela reside em lugares ainda onde não cheguei e não vou estar, vivendo dentro de pessoas com as quais não estive e não falei. E nem mesmo serei capaz de absorver todo o material documental que registrei, tarefa hercúlea para deuses onipresentes. A história, ao fim, é de quem a viveu e dela poderá contar, sempre uma parte, de algum ponto-de-vista que lhe dê sentido.
Portanto, chegou a hora do ponto final. Não consigo mais adiar, o romance precisa chegar ao público. Se o relógio da Casa do Sol diz que “É mais tarde do que supões”, ele está certo, nunca há tempo para quem tem um projeto ou vários projetos, o dia é pequeno para tantos sonhos e desejos. Mas à medida que se estilhaça também se recompõe a cada instante: como nestas frases, basta uma palavra atrás da outra, uma-palavra-atrás-da-outra, para a vida colocar-se em movimento e seguirmos adiante. O romance começa, de fato, com esta última linha de costura, aquela invisível que a tudo envolve e tece o poema.
Não posso seguir sem primeiro agradecer a Olga Bilenky e Daniel Bilenky Mora Fuentes, herdeiros de Hilda Hilst e de Mora Fuentes, bravos e incansáveis lutadores na manutenção da Casa do Sol e do Instituto Hilda Hilst, pela amizade, acolhida e confiança.
Um agradecimento profundo, especial e in memorian a Hilda Hilst e José Luis Mora Fuentes, a quem tive o prazer de conhecer e conviver um pouco, mas suficiente para admirá-los e amá-los por terem feito da Casa do Sol um templo da criação, da liberdade de ser e do bom convívio. À Figueira, que realizou todos os pedidos a ela confidenciados.
Às pessoas que generosamente me receberam e se dispuseram a abrir seus baús de memórias, se expuseram e permitiram confidências, trocas e interlocuções: Dante Casarini, Jurandy Valença, Edson da Costa Duarte, Renata Caldana e Ana Lúcia Vasconcelos. Quero agradecer também àqueles com quem estive na Casa do Sol e pude partilhar momentos inesquecíveis durante as residências: Glauce Guima, Gabriela Greeb, Isadora Krieger, Júlia Porto, Matheus Soriedem e Roberta Ferraz.
A Gabriel Castro Cavalcante, primeiro leitor da primeira e da última versão, pelo amor e amizade, cujo encontro, acreditamos, deveu-se também à paixão por Hilda Hilst, ela, de alguma forma, nossa madrinha.
Às leitoras e leitores que vêm acompanhando essa saga, seja nas publicações do processo na Revista Literar ou mesmo na página do romance na internet ou no meu Blog Escrita em Progresso. O apoio e o retorno foram cruciais para que o livro chegasse agora à sua fase final.
“A Casa da Senhora H” é, portanto, a minha história sobre a história da Casa do Sol, à qual sinto pertencer também e onde espero voltar mais e mais vezes. É fruto de uma paixão, de descobertas, de intensas e profundas pesquisas, de vivências e experiências pessoais e também de muita imaginação, que me permitiram reconstruí-la e recontá-la, palavra sobre palavra. A vocês meu carinho e afeto.