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O DIREITO À CASA

Todo mundo deveria ter uma casa, é parte da nossa dignidade humana. Todavia, sabemos que o cenário é desigual para todas e todos. Cada vez mais, na cidade onde moro, no país onde vivo, no planeta onde habito, há muitas pessoas em situação de rua, seja por falta de um espaço fixo, desejo de liberdade, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, violência doméstica e abuso, alcoolismo e uso de drogas, perda de emprego. Marquises, praças, viadutos, pontes, edificações abandonadas e degradadas e até carcaças de veículos tornam-se casa para pessoas que, em sua maioria, são homens jovens, pardos ou negros e trabalhadores.

Há também mulheres e crianças que de alguma forma buscam junto aos demais sua permanência e sobrevivência, seja pela economia informal, além da controversa esmola que divide opiniões e práticas em nossa sociedade judaico-cristã. E há os inconvenientes para quem habita esses espaços: violência, falta de saneamento básico, higiene e alimentação, abandono, a precariedade de uma vida de mínimo conforto e a iminência de despejo ou remoção para abrigos públicos, outra realidade de muita gente.

O direito fundamental à moradia é garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidades em 1948 e pela Constituição brasileira (a partir do ano 2000 por meio de uma Emenda ao texto original). Por moradia, entende-se no mínimo um lugar salubre, com água, esgoto, coleta de lixo, pavimentação e luz elétrica, além de segurança e acesso a escolas, postos de saúde, transporte público e espaços de sociabilidade.

Há iniciativas de políticas públicas para garantir esse direito, entretanto ainda não é suficiente, há muito o que se fazer. Há descasos de parte do Estado em todas as instâncias, federal, estadual e municipal, sem contar as ações de desapropriação de moradias que muitas vezes prejudicam, sobretudo, os residentes e proprietários. Há pessoas que habitam áreas de risco e sofrem com as intempéries da natureza, abalos e chuvas torrenciais, há a expansão das favelas e comunidades muitas vezes sem estrutura, ainda que o teto possa estar garantido sem tantas garantias.

E há os movimentos de ocupação de espaços ociosos, rurais ou urbanos, que movimentam milhões de pessoas que não têm condições de pagar aluguel ou não conseguiram ser atendidas por políticas públicas. Os últimos números pesquisados revelam que em nosso país há 7,2 milhões de imóveis vagos, sendo quase oitenta por cento em áreas urbanas e quase noventa por cento em condições de habitação. Movidas por um espírito de comunidade e integração, as ocupações reivindicam o direito à moradia, muitas vezes criticadas aqui e acolá, por quem está muito bem no conforto de seu próprio lar.

Alguns nomes de ocupações são homenagens a personagens que lutaram ontem e hoje por esse direito, outras são referências a espaços poéticos, em que me permito citar algumas de Belo Horizonte e região metropolitana: Dandara, Carolina Maria de Jesus, Izidora, William Rosa, Rosa Leão, Eliana Silva, Vila Esperança, Vila Nova, Vila da Conquista, Pátria Livre, Vitória. São milhares de famílias que convivem com o desprezo ou rechaço de grande parte da sociedade, o clima de instabilidade, ameaça de despejo e falta de infraestrutura básica. Por outro lado, sobrevivem com o apoio de outra parte da sociedade e se fortalecem pela solidariedade e organização de seus habitantes, que promovem regularmente debates horizontais, ações afirmativas de bem estar, de produção e acesso à cultura, à alimentação e à educação. Realidades podem, sim, ser transformadas.

Do lado de cá, do mundo pequeno burguês e burguês do qual faço parte, tenho consicência dos privilégios a que tive acesso: nasci e fui criado em casa própria (ainda que meus antecedentes não necessariamente), tive escolaridade formal e de qualidade, que me permitiram formação e consequente entrada no mercado de trabalho, com muita batalha e suor também, e assim pude garantir-me uma casa, ainda que alugada, que posso chamar de minha. Nesta bolha, moradias são adquiridas por oportunidades e esforço pessoal, mas também por ofertas e presentes de parentes, psois o direito sobre a propriedade privada incide em questões de herança e sucessão. Se a materialidade da casa é o princípio básico do direito à moradia, na sequência está a construção do afeto e das relações pessoais que o ambiente permite, de saúde física e mental, de um existir minimamente pleno.

A escritora Hilda Hilst nasceu em berço aristocrático, o pai era um Almeida Prado de São Paulo, e pôde construir a casa de seus sonhos nas terras da fazenda que sua mãe herdara de um amante. Teve condições e oportunidades de ter o tão almejado espaço para escrever e receber os amigos, manter um jardim de plantas exóticas e acolher cães abandonados. Mas a vida na Casa do Sol não foi sempre um mar de rosas, ao contrário, afinal, artista é profissão mal vista, mal remunerada e desvalorizada e é sobre a manutenção dessa opção de vida que persigo essa história, a história d’ “A Casa da Senhora H”.

Ph: Guto Kuerten/DC

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