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Autoficção


Teria nascido Benito Juárez, uma homenagem de seu Avô ao estadista mexicano Benito Pablo Juárez García por quem nutria profunda admiração. Antes, a homenagem estivera reservada para o primeiro filho do Avô que, natimorto, obrigou-o a esperar nova oportunidade, concretizada muito depois com o primeiro neto. Entretanto, para que não ficasse marcado e carregasse uma trajetória que não fosse sua, o Avô decidira desacentuar para renacionalizar o nome do primogênito de sua filha, depois condensar e inverter ordens, ficando Juarez Benito. O Avô tinha essa admiração porque era comunista, mas cujo princípio era somente e tão somente a igualdade e o bem comum, insistia em fazer o bem e ajudar os outros a estar bem quanto ele, a Avó também tinha os mesmos princípios ainda que não fosse por ideologia, que desconhecia pela desescolaridade, mas somente e tão somente por seguir seu coração e valores cristãos.

O Avô era comunista e nacionalista, tendo se voluntariado à Pátria Amada Brasil na Itália durante a Segunda Guerra, o que lhe rendeu ao fim do combate a surdez de um ouvido e depois um câncer no pâncreas que o levou cedo desta vida. Teria sido investigado pela polícia nos Anos de Chumbo, episódio que a filha se lembra quando, criança, viu o pai ser levado para a delegacia daquela cidadezinha onde viviam e que tinha o poético nome de Queluz de Minas. Tinham ascendência portuguesa, eram Os Guimarães, mas o neto era um desvio, batizado hispanicamente para honrar um ídolo, e um desvio também é uma marca.

De Juarez Benito, que o Avô conheceu até a tenra idade dos seis anos, esperava que fosse Doutor. Acabou sendo, num futuro do qual ele não participaria, mas não como o neto médico que ansiara e sim como Professor Doutor de uma importante universidade. Da genética implacável, que marca as descendências e nos lembra de onde viemos, quando sabemos de onde viemos, herdou do Avô a leitura voraz, a generosidade, o tabagismo por convicção e a calvície. Juarez Benito, entretanto, não se afirmava comunista como seu abuelo, ainda que colocasse os outros tantas vezes à frente de si, e defendia os princípios boêmios do Amor, da Beleza, da Verdade e da Liberdade. Talvez já tivesse vivido na Paris de Toulouse-Lautrec, talvez tivesse já sido um Moulin-Rouger, um boêmio-artista-vagabundo-com orgulho e alegria de ser quem se é.

Das convicções perseguidas, Juarez Benito desconhecera durante muitos e muitos anos a Liberdade e o Amor, porque com o tempo percebeu novas marcas de seu desvio em direção a uma subjetividade tomada como proibida, como imoral, contra os dogmas sob os quais era criado pela Família. Não compreendia que podia ser e amar e que para isso era preciso Liberdade, o que só se conquista com independência. Criou um mundo totalmente seu, exclusivamente seu, envolvo por desenhos e livros, que o permitiam transcender aquela realidade conformada. Envolto pela ficção que lhe fornecia ar para respirar, alimento para sobreviver e onde experimentava outras existências mais possíveis que a sua própria, o jovem Juarez Benito acabou por começar a escrever, garantindo-se a possibilidade de existir ao menos em folhas de papel.

No tempo em que hormônios dilaceram o corpo e o espírito, criando ondas de alegria e excitação, medo e resistência, passava os dias encerrado em canetas, lápis coloridos, papéis e máquina de escrever. Apaixonou-se pelas palavras que ora o seduziam em páginas de livros ora emergiam de seu de dentro, pululando nas teclas que marcavam folhas em branco. Podia ser e escrevia muito, muito, horas e horas a cada dia, alternando-se entre os estudos obrigatórios e nem sempre atraentes. Escrever era um prazer onanista. A Mãe preocupava-se, o Pai ignorava, a Tia incentivava, a Avó contava-lhe histórias. E ainda que o ofício lhe permitisse ser, era tido como má profissão, não entendia, sofria pela impossibilidade. Insistiu até que precisou escolher como seguir a vida e ser independente. Escolheu o caminho do meio.

Deixou a pequena Queluz, que naquela altura já nem era tão pequena, o que não fez diminuir em nada a ocupação de uns com a vida dos outros e nem mesmo o falatório pelos cantos, pelos becos, pelos baixios, para estudar e viver na Capital que, de tão grande, lhe coube confortável para viver em Liberdade e descobrir o Amor. Ele se lembra da primeira noite que dormiu na nova cidade, aliás não dormiu excitado pela falta de sombra, de ter um lugar seu, íntegro e real. Foi então que tudo o que imaginara em palavras começavam a ganhar concretude. Medo e alívio. Fez amigos, descobriu o sexo, formou-se, arranjou emprego, realizava-se em cada encontro, em cada gesto, mas faltava o Amor, sempre à espreita, grudado nos outros, e tão distante.

Abandonou-se, escrevia para os outros e ganhava dinheiro. Frequentava as boemias do Centro, divertia-se, continuava um leitor voraz e aos poucos foi reunindo suas aquisições numa biblioteca que será sua maior herança, seu bem precioso de uma vida dedicada às palavras. Mestrou-se, professorou-se, doutorou-se, concursou-se, ingressando catedrático na universidade. A docência lhe permitia ler, pesquisar, estudar, ensinar e aprender, um alento. Contudo, a rotina e a generosidade faziam-no esquecer-se de si, vez ou outra tentava o computador, que substituiu sua boa e velha máquina Underwood 298, ensaiava teclas, tinha receio. Escrever para quê e para quem? As livrarias, as que sobreviviam naquele mundo televisual, viviam abarrotadas, centenas, milhares de títulos, percorria as prateleiras entre a angústia e a excitação. Um caminho tão belo, não menos árduo, teria forças?

Um dia, exausto da melancolia de noites embebidas de álcool e cigarros, da vaziez da solidão e da ignorância do Amor, pensou por bem que sua única salvação estava nas folhas em branco, na tela em branco, mas Juarez Benito, ele mesmo, não se bastava, estava farto da rotina espiralada em constante looping e que o mais incrível de escrever era poder ser o que não se era, uma vida inteira disponível para mergulhos profundos e viagens intermináveis. E, para isso, precisava ser outrem, alguém próximo a si, mas independente. Desse movimento entre a realidade e a ficção, entre memória e invenção, surgiu o Senhor A, um escritor que escrevia e nunca publicava por medo de se dar a ver, mas que num determinando dia de sua vida seria descoberto pelos olhos de um Leitor.

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